A Nicarágua vive uma crise política que envolve diretamente a Igreja Católica que virou até assunto na campanha no Brasil.
O governo de Daniel Ortega acusa parte da Igreja de tentar desestabilizar o Estado. Mas é internacionalmente criticado por conduzir um governo autoritário que se perpetua no poder por meio de eleições sob suspeita.
Um dos capítulos mais graves dessa crise aconteceu em agosto, com a prisão domiciliar do bispo Rolando Álvarez, voz crítica ao governo de Ortega dentro da alta hierarquia da Igreja Católica. A prisão despertou críticas dentro e fora da Nicarágua.
Sou Nathalia Passarinho, da BBC News Brasil e neste vídeo vou explicar por que a Nicarágua virou palco de disputas entre o presidente e a Igreja – e como esse debate chegou ao Brasil.
Essa disputa na Nicarágua não vem de agora. Segundo um relatório da ONG Observatório Pró Transparência e Anticorrupção, a Igreja foi alvo de quase 200 ataques entre abril de 2018 e maio de 2022.
Mas a prisão do bispo Rolando Álvarez, conhecido por denunciar violações de direitos humanos no governo Ortega, foi um momento marcante. Afinal, o bispo é a segunda mais alta autoridade católica no país, atrás apenas do cardeal.
Rolando Álvarez também é visto por muitos como a última voz abertamente crítica a Daniel Ortega dentro da alta hierarquia da Igreja Católica na Nicarágua. O bispo de Matagalpa é acusado pela polícia de, entre aspas, “organizar grupos violentos, incitando-os a executar atos de ódio contra a população com o propósito de desestabilizar o Estado da Nicarágua e atacar as autoridades constitucionais”.
O bispo nega essas acusações. Álvarez está em prisão domiciliar. E seu caso não é isolado. Além dele, outros sete sacerdotes foram detidos neste ano na Nicarágua. O caso mais recente a ganhar o noticiário é o do padre Óscar Danilo Benavidez Dávila, formalmente acusado pelo Ministério Público em 26 de setembro. As acusações, porém, não foram divulgadas até o momento. Em 2019, outro bispo crítico ao governo, Silvio Báez, se exilou depois de receber ameaças de morte.
Além disso, no último ano e meio, as autoridades da Nicarágua expulsaram do país o representante do Vaticano lá, além de 18 freiras da Ordem de Caridade, fundada pela Madre Teresa de Calcutá.
Várias emissoras de rádio católicas, muitas delas sob o comando do bispo Rolando Álvarez, também foram fechadas, algo que a comunidade internacional denunciou como mais um ato autoritário de Ortega. Ortega é um ex-guerrilheiro sandinista que derrotou o regime ditatorial de Anastasio Somoza em 1979 e presidiu a Nicarágua entre 1985 e 1990.
Voltou ao poder eleito em 2007, e continua no poder até agora. É acusado de ter escalado a repressão aos adversários para se manter no comando.
Em novembro de 2021, ele foi reeleito com 75% dos votos para um quarto mandato consecutivo em uma eleição considerada de fachada, porque sete candidatos opositores foram presos e por causa de denúncias de fraude feitas por organizações internacionais. Outra crítica é que vários de seus familiares ganharam cargos no Poder Executivo. O caso mais emblemático é o da sua mulher, Rosario Murillo, que desde 2017 é vice-presidente.
Além disso, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos documentou torturas e outras violações de direitos praticados por autoridades do país. A entidade contabilizou mais de 190 presos políticos, parte deles em condições sub-humanas.
Já Ortega diz que essas críticas são invenções e que fazem parte de uma campanha para difamar a Nicarágua internacionalmente. Ele acusa os bispos católicos de, entre aspas, tomarem partido, de se aliar a golpistas e promover a criação de seitas satânicas.
Segundo pesquisas como a do instituto Gallup, 85% dos nicaraguenses desaprovam a gestão Ortega. Apenas 13% são a favor. O presidente, por sua vez, encomendou pesquisas próprias, em que obteve suposto índice de aprovação de 77%.
É preciso levar em conta que na Nicarágua a Igreja Católica segue sendo uma instituição de grande influência. Estamos falando de um país de mais de 6 milhões e meio de habitantes, onde 90% da população se declara cristã.
No início do seu mandato, Daniel Ortega se manteve próximo à Igreja. Segundo o cientista político Manual Orozco, isso mudou quando o presidente consolidou seu poder e deixou de precisar de votos para ganhar eleições, classificadas de pouco transparentes. Nos últimos anos, o presidente endureceu sua retórica contra a Igreja e passou a chamar sacerdotes de golpistas ou terroristas.
Mas o marco desse rompimento foram os protestos de 2018, que começaram como manifestações contra reformas na Previdência Social e evoluíram para uma revolta contra o governo.
A repressão das forças de segurança e de civis armados ligados ao sandinismo deixou ao menos 200 mortos. Nas contas da Comissão Interamericana, esse número foi de 328. E organizações da sociedade civil alegam que o número de mortos chegou a 650.
Milhares de pessoas ficaram feridas, e cerca de mil e seiscentas foram presas, segundo a Comissão Interamericana. Nos protestos, a Igreja Católica apoiou os manifestantes e abrigou alguns deles na catedral de Manágua, para protegê-los das forças de segurança.
A autoridade máxima da Igreja, o cardeal Leopoldo Brenes, tentou intermediar um diálogo. Mas fracassou e acabou acusando Ortega de perseguir a Igreja. Mas hoje a Igreja não tem uma posição única frente ao governo de Ortega.
Existem as vozes críticas, mas também a defesa, por uma parte da alta hierarquia da Igreja, que declara que o governo não é inimigo.
O cientista político Manuel Orozco é um dos críticos que acham que a alta cúpula da Igreja tem sido omissa diante do ocorrido na Nicarágua. Enquanto isso, no Vaticano, o papa Francisco disse ter acompanhado com preocupação e tristeza o ocorrido na Nicarágua, quando o bispo Rolando Alvarez foi preso. Francisco pediu, entre aspas, “um diálogo aberto e sincero para uma convivência respeitosa e pacífica”.
No Brasil, as ações do governo de Daniel Ortega contra sacerdotes católicos na Nicarágua tem alimentado ataques eleitorais e notícias falsas contra a candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Em 19 de agosto, por exemplo, Eduardo publicou no Twitter, Facebook e Instagram uma montagem afirmando que "Lula e PT apoiam invasões de igrejas e perseguição de cristãos". Na mesma imagem, há recortes de notícias sobre a perseguição de religiosos na Nicarágua e de declarações do PT e de Lula sobre o presidente Daniel Ortega.
Lula é acusado de minimizar os abusos cometidos pelo regime de Ortega e evitar comentar o assunto. Em uma entrevista ao El País em novembro do ano passado, o candidato petista questionou, entre aspas: ‘Por que Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e Daniel Ortega, não?’.
Foi lembrado pelos entrevistadores que Merkel não mandou prender adversários para se manter no comando da Alemanha. Ao que Lula respondeu, entre aspas: "Eu não sei o que as pessoas fizeram para ser presas.
Se o Daniel Ortega prendeu a oposição para não disputar a eleição, como fizeram no Brasil contra mim, ele está totalmente errado."
Bolsonaro tem falado da prisão de religiosos e tentado vincular Lula ao governo Ortega, dizendo que os dois são amigos. Semanas atrás, a campanha de Lula obteve sucesso ao pedir à Justiça Eleitoral que tirasse do ar postagens do deputado Eduardo Bolsonaro associando o petista a Ortega. O TSE considerou que as mensagens postadas pelo filho do presidente Jair Bolsonaro “resultam em desinformação, a configurar propaganda eleitoral negativa e ofensiva à honra” de Lula.
A BBC News Brasil enviou para a campanha do ex-presidente perguntas sobre a posição dele em relação às acusações de perseguição na Nicarágua. Mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem.